Apelante/Autora:
MFT
Apelada/Ré:
SUL AMÉRICA COMPANHIANACIONAL DE SEGUROS
MM.ª Juíza
de Direito: Cláudia Maria Pereira Ravacci
Comarca de
São Paulo 35ª Vara Cível
Voto nº
11695
SEGURO
DE VEÍCULO NEGATIVA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA DESTRUIÇÃO DO BEM SEGURADO POR
ATO PRATICADO POR TERCEIRO, COM USO DE MATERIAL INCENDIÁRIO. Exclusão de
cobertura securitária.Abusividade. Anulação de cláusula contratualnecessidade -
inteligência do art. 51, IV do CDC. Indenização devida - dano material, em
razão dacontratação de advogado particular não cabimentocumprida a obrigação
contratual pela seguradora tem osegurado a obrigação de entregar os
documentosreferentes ao salvado para a transferência da propriedadeà seguradora
decisão reformada. RECURSO DAAUTORA PARCIALMENTE PROVIDO.
Trata-se de ação de cobrança
deindenização securitária cc. indenização por danos materiais, fundada
emcontrato de seguro de veículo, ajuizada por MFT contra SUL AMÉRICA COMPANHIA
NACIONAL DE SEGUROS, julgadaimprocedente pela r. sentença de primeiro grau
(fls. 186/187), cujorelatório adoto, condenando a Autora ao pagamento dos
honoráriosadvocatícios do patrono da parte contrária fixados em R$
1.000,00,observada a gratuidade de justiça.
Inconformada com a r. sentença,
aAutora interpôs o presente recurso de apelação (fls. 190/199), tendo a
Réapresentado contrarrazões às fls. 214/217.
O recurso foi regularmenteprocessado.
É o relatório.
Trata-se de recurso de apelação
interposto contra r. sentença de
primeiro grau que julgou improcedente
ação de cobrança de indenização
securitária cc. indenização por danos
materiais ajuizada por segurada em
face de seguradora.
Extrai-se dos autos que a Autora
celebrou com a Ré contrato de seguro
de veículo, com vigência de
01.ABR.2008 a 01.ABR.2009 (fls.
20/21), com objetivo de garantir a
reparação de eventuais danos causados
ao seu veículo (-Fiat Pálio
Celebration 1.0, de placa DZG 4224-).
Em razão da ocorrência do sinistro
durante a vigência do contrato
(22.ABR.2008), consistente no incêndio
criminoso do veículo segurado durante
a madrugada, na garagem de sua
residência, que acarretou a sua perda
total, a Autora pleiteou
administrativamente o pagamento da
indenização securitária, o que foi
recusado pela Ré em 20.MAI.2008, sob a
alegação de que o dano estaria
expressamente excluído da cobertura
securitária (fls. 49).
Diante da recusa da Ré, a Autora
ajuizou a presente ação, pretendendo a
condenação da Ré ao
pagamento da indenização securitária,
bem como a indenização pelos
prejuízos causados pela negativa,
notadamente quanto à contratação de
advogado, no valor de R$ 3.000,00.
Em sede de contestação (fls.
98/112), a Ré discorreu sobre a
improcedência dos pedidos, em razão da
legitimidade da recusa administrativa,
com fulcro em cláusulas
contratuais. Em atenção ao princípio
da eventualidade, sustentou que o
valor da indenização deve observar a
forma de contratação escolhida,
correspondente a 100% do valor de
mercado do veículo, na época do
sinistro; requerendo a entrega de
todos os documentos inerentes ao
veículo para fins de sub-rogação.
A magistrada “a quo” julgou
improcedentes os pedidos, sob o
entendimento de que o sinistro estava
excluído da cobertura contratual, sem
que houvesse abusividade da
cláusula, o que motivou a interposição
do presente recurso.
Pretende a Autora em sede
recursal a reforma da decisão, sob as
seguintes alegações: a cláusula em
que a Ré se baseou para negar o
pagamento da indenização não se
enquadra no caso dos autos, que
decorreu de um ato isolado de um
terceiro incendiando o bem segurado e
não de um contexto de
perturbação social generalizado;
cláusulas contratuais são contraditórias
quanto à cobertura contra incêndio,
prevalecendo a solução favorável ao
consumidor; a cláusula que serviu de
fundamento para a negativa da
indenização não é limitativa e sim
excludente de uma obrigação
regularmente assumida, o que seria
abusivo e violaria a essência do
contrato de seguro.
Desse modo, a questão do recurso
resume-se: na existência ou não do
direito da Autora, segurada, à indenização
securitária, em razão da ocorrência do
sinistro (perda total do veículo segurado
em razão de incêndio), além de
indenização por danos materiais, em razão dos
prejuízos causados pela recusa
administrativa, principalmente a contratação de
advogado particular.
No que tange especificamente ao
contrato de seguro, trata-se de
negócio jurídico por meio do qual “uma
empresa especializada
obriga-se para com uma pessoa, mediante contribuição
por esta prometida a
lhe pagar quantia certa, se ocorrer o risco prometido.” (cf.
Orlando Gomes). Ainda, segundo o art.
760 do CC: “A apólice ou o bilhete
de seguro serão nominativos, à ordem
ou ao portador, e mencionarão os riscos
assumidos, o início e o fim de sua
validade, o limite da garantia e o prêmio
devido, e, quando for o caso, o nome
do segurado e o do beneficiário.”
Dessa forma, trata-se, sim, de
contrato bilateral e oneroso, pelo
qual as duas partes contraem
obrigações mútuas, com vantagens
recíprocas, devendo ambas guardar
tanto na conclusão como na execução do
contrato a mais estrita boa-fé e
veracidade (CC, art. 765), razão pela
qual se dá extremo valor ao quanto
ajustado pelas partes contratantes.
Ocorre que o Código de Defesa do
Consumidor também se aplica à hipótese
dos autos, e o inciso IV do
artigo 51 do CDC determina que são
consideradas nulas as cláusulas
contratuais que:
“IV - estabeleçam
obrigações
consideradas iníquas,
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.” (destacado)
No caso em tela, a Ré não se
insurgiu quanto à existência de
cobertura securitária por danos causados
ao veículo segurado decorrentes de
incêndio, mas sim quanto à
existência de cláusula contratual
limitativa da cobertura no caso de danos
decorrentes de atos praticados por
terceiros.
A cláusula 2.7 do manual do
segurado (fls. 25) contempla a
cobertura securitária, garantindo a
indenização, além de outras hipóteses,
por danos causados ao veículo
segurado decorrentes de atos
praticados por terceiros, exceto os
excluídos na cláusula 2.11, que,
dentre outras restrições, não cobre
“reclamações por danos decorrentes,
direta ou indiretamente, próxima ou
remotamente, de arruaça, depredações,
pichações, badernas, aglomerações,
vingança, comoção civil, manifestações
de protesto, qualquer perturbação da
ordem, destruições deliberadas do bem
segurado, com uso de arma de fogo ou
qualquer objeto contundente, material
incendiário, inclusive, pontapés, dentre
outros meios deliberados, inclusive
ameaças, tudo ainda que em situações fora
do controle habitual do segurado e ou
do segurador, sendo ou não possível
identificar e individualizar
precisamente os seus autores.”
A recusa da Ré ao pagamento da
indenização baseou-se justamente em
tal excludente, em razão do
incêndio ocorrido no veículo da Autora
ter decorrido de vandalismo e não
ter sido um evento convencional, o que
afastaria o direito à indenização.
No entanto, infere-se que tal
excludente contratual contra o risco
coberto “atos praticados por terceiro”
(cláusula 2.11, item b) esvazia
totalmente a cobertura securitária
expressamente prevista, o que
configura abusividade, em ofensa a boafé,
por excluir toda a responsabilidade da
ré por atos praticados por
terceiros, restringindo direitos e
obrigações inerentes à natureza do
contrato.
Com efeito, não há como se afastar
a abusividade quando um risco, em
princípio coberto pelo seguro, como
“atos praticados por terceiro”, tiver
como causa excludente do dever de
indenizar exatamente a hipótese em que
tal risco se concretizaria, como
“destruição deliberada do bem segurado
por ato praticado por terceiro
fora do controle habitual do
segurado”, e isso porque tal limitação esvazia
a própria essência do contrato de
seguro de veículo celebrado entre as
partes, que tem o objetivo principal
de garantir ao segurado a indenização
dos prejuízos sofridos por atos
deliberados praticados por terceiros.
Sobre a exclusão de riscos no
contrato de seguro, bem elucidou a i.
Ministra Nancy Andrighi, do Colendo
Superior Tribunal de Justiça:
“(...) O objeto do seguro é o risco.
Conforme anota Silvio Rodrigues, o
segurado transfere o risco para terceiros,
trazendo para aquele “a tranqüilidade
resultante da persuasão de que o sinistro
não o conduzirá à ruína, pois os
prejuízos, que porventura lhe advierem, serão
cobertos pelo segurador ” (Direito
civil, v. 3, 29ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 332).
Daí extrai-se que os contratos de
seguro carregam intrinsecamente dois
fatores antagônicos: de um lado, a
circunstância de se tratar de típico
instrumento de adesão, em que predominam
cláusulas gerais, propiciando a
inserção de regras prejudiciais aos interesses do
segurado-aderente; e de outro, o fato
de, embora pré-redigidas, as cláusulas
delimitadoras do risco serem, via de
regra, válidas, não se confundindo com as
chamadas cláusulas de não indenizar,
que em geral são abusivas.
Assim, não há como ignorar que o
contrato de seguro se assenta sobre a
seleção de riscos, pois é inviável que
uma pessoa pretenda segurar-se contra
todo e qualquer risco e, por outro lado,
é inútil proteger-se contra nenhum
risco.
É nesse processo de seleção de riscos
que se revela o entrechoque de
interesses que, em última instância, leva à
celebração do contrato. O segurador
busca maximizar as receitas que aufere
para administrar o fundo comum que irá
cobrir riscos bem delimitados, enquanto
o segurado quer se proteger contra o
maior número de riscos pelo menor custo
possível.
A vontade livremente expressa pelas
partes na escolha dos riscos cobertos
pela apólice deve revelar, portanto, o
ponto ótimo de equilíbrio contratual,
tendo por base a boa-fé, prevista no art. 765
do CC/02, que, na essência, repete a
redação do art. 1.443 do CC/16: “o
segurado e o segurador são obrigados a
guardar na conclusão e na execução
do contrato, a mais estrita boa-fé e
veracidade, tanto a respeito do objeto, como
das circunstâncias e declarações a ele
concernentes ”.
Trata-se de boa-fé objetiva, devendo
ser
compreendida como regra de
comportamento e não como mero estado subjetivo
dos contratantes. Nesse sentido
objetivo, a boa-fé exige que os contratantes se
tratem com lealdade, de forma que a
relação contratual não seja fonte de
prejuízo para as partes. Mais do que
isso, a boa-fé exerce papel relevante na
limitação do exercício inadmissível de
posições jurídicas.
Dessa forma, a boa-fé restringe o
exercício de direitos, para que não se
configure a abusividade. A parte
contratante não pode exercer suas
pretensões de forma injusta ou exagerada
com a finalidade de prejudicar a
outra.
O art. 13 do DL 73/66, reflete essa
mesma preocupação ao impedir que as
apólices contenham cláusulas cujo efeito
prático seja a subtração da eficácia
do negócio jurídico.
Na prática, deve-se confrontar o
objeto
do seguro contratado com os riscos
excluídos e ver se o equilíbrio do negócio se
preserva. Em outras palavras, trata-se
de verificar se, na sua vigência, o seguro
preservará a cobertura que o
proponente almejou no ato da sua contratação.”
(REsp nº 917.356 ES) (destacado)
Desse modo, a excludente do dever
de indenizar “in casu” (cláusula 2.11,
item b) é abusiva, razão pela qual
deve ser anulada, com fulcro no art.
51, IV do CDC, prevalecendo a
obrigação da Ré de indenizar nos
limites avençados pela perda integral
do bem segurado.
Segundo o contrato celebrado entre
as partes, garantiu-se a indenização
do veículo segurado por reposição
garantida, correspondente ao valor
médio do veículo referência, no
percentual de 100%, apurado na Tabela
FIPE na data da liquidação do
sinistro (fls. 20/21; 25 e 39vº), o
que corresponde “in casu” a quantia de
R$ 27.015,00 (fls. 58), monetariamente
atualizada a partir do ajuizamento
da ação e com juros de mora de 1% ao
mês a partir da citação.
Vale observar que a Autora deverá
entregar os documentos referentes ao
salvado à Ré, em prazo a ser
fixado no Juízo de origem ( CPC, art.
461, § 4º e 5º) para o recebimento
da indenização securitária, e isso
porque o pagamento da indenização
pela perda total do veículo, transfere
a propriedade do bem para a
seguradora, ocorrendo a sub-rogação na
propriedade do veículo,
nascendo, em consequência, a obrigação
do proprietário de entregar à
seguradora os documentos referentes ao
veículo, para que possa ser
regularizada a propriedade junto ao
órgão competente (CTB, art. 126,
parágrafo único).
Explica Arnaldo Rizzardo: “O veículo
totalmente desmontado, ou
irrecuperável em vista de seu estado de decomposição,
não poderá ser utilizado para a
reconstituição, se mantida a mesma identidade.
Surgindo um novo veículo, há de se
mudar o número do chassi, ou passará a ter
uma nova identificação. Não que a lei
vede a sua utilização. Exige unicamente que
se apresente uma nova identidade,
distinta da anterior (...)
De acordo com o parágrafo único do
art.
126 do Código, se transferido o
veículo para alguma companhia seguradora, ou a
terceiro, para desmonte ou
aproveitamento de peças, aos mesmos transfere-se a
responsabilidade pela baixa.” (em
“Comentários ao Código de Trânsito
Brasileiro”, RT, ed. 1998, pág. 381,
383).
Por outro lado, incabível a pretensão
da Autora de reparação por dano
supostamente causado pela
contratação de advogado para a
propositura da presente demanda de
indenização securitária e isso porque
decorrente de liberalidade da Autora
para o reconhecimento judicial de
abusividade de cláusula contratual
expressamente prevista no contrato
celebrado entre as partes e que
autorizava a negativa administrativa.
Em razão de a Autora ter decaído de
parte mínima do pedido, a Ré deverá
arcar com o pagamento das custas
e despesas processuais, além dos
honorários do patrono da Autora
arbitrados em 10% do valor da
condenação, monetariamente atualizado,
nos termos do art. 20 cc. art. 21,
parágrafo único, ambos do CPC.
Diante do exposto, CONHEÇO e
DOU PARCIAL
PROVIMENTO ao
recurso interposto pela Autora, para
REFORMAR a r. sentença de
primeiro grau e JULGAR PROCEDENTE
EM PARTE a presente ação de
cobrança de indenização securitária, para
condenar a Ré a pagar
à Autora a quantia de R$ 27.015,00,
monetariamente
atualizada a partir do ajuizamento da ação e com juros
de mora de 1% ao mês
a partir da citação, com a observação de que a
Autora deverá
entregar à Ré os documentos referentes ao salvado, em
prazo a ser fixado no
Juízo de origem ( CPC, art. 461, § 4º e 5º). Em
razão de a Autora ter
decaído de parte mínima do pedido, a Ré deverá
arcar com o pagamento
das custas e despesas processuais, além dos
honorários do patrono
da Autora arbitrados em 10% do valor da
condenação,
monetariamente atualizado, nos termos do art. 20 cc. art.
21, parágrafo único,
ambos do CPC.
Berenice Marcondes Cesar
Relatora
Fonte: TJSP
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